Entrevista com Helena Ignez

Entrevista com Helena Ignez


Helena, capa de O Cruzeiro em 1969, à época de a indicação ao
prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília


Queria primeiro que você falasse um pouquinho das coisas que você vem fazendo. Você é atriz do novo filme do Rogério [Sganzerla, também marido de Helena], Sob o Signo do Caos...

Sou. O Sob o Signo do Caos eu fiz, já foi há um tempinho a filmagem, mas ele está terminando agora. E é lindo. Adorei. Eu fiz a parte de dublagem também. É interessantíssimo, porque é um filme muito da palavra. Além disso fiz o São Jerônimo, do Júlio Bressane, e o Maria Moura, com a Leilane Fernandes, no ano passado, e vamos ver o que vai acontecer. Foi uma participação interessante com o Jorge Dória e com a Djin Sganzerla, minha filha.

Você também faz bastante teatro, fez várias peças...

É. Fiz Savannah Bay... Antes fiz Cabaret Rimbaud, não aqui no Rio, mas em São Paulo, em Salvador, onde a peça surgiu, e também em Barcelona, onde fomos convidados para participar num festival de arte brasileira. Foi uma experiência super interessante. E o ano passado, além de fazer Savannah Bay em São Paulo, onde tivemos uma crítica maravilhosa, páginas inteiras de cadernos culturais, cotação máxima do Nélson de Sá, da Folha de São Paulo. Depois disso eu passei a ensaiar Antiga, do Dionísio Neto, que é um autor jovem com uma receptividade enorme da crítica paulista desde o primeiro trabalho dele, Perpétua. Ele é jovem, 29 anos, também é ator. Foi um papel excelente, com o José Rubens Chachá e também com a Djin.

Uma coisa curiosa ao longo da sua carreira é que ela tem um perfil experimental, de você sempre estar trabalhando com o pessoal da vanguarda. Como é isso, você acredita que os diretores que têm uma maior afeição ao experimental te chamam?

É verdade.... É uma coisa que deve ter uma sincronicidade. Porque naturalmente eu já surgi numa vanguarda. Surgi no teatro baiano no momento de extrema vanguarda, de rompimento total com a parte mais provinciana do teatro brasileiro, com um grupo fantástico, dos meus mestres Martim Gonçalves, Gianni Rato e também alguns americanos, e pessoas importante dentro da história do teatro americano, alguns diretores mesmo da Broadway. Então foi muito interessante essa mistura, porque isso representava a grande vanguarda na época. E por aí eu fui no cinema logo com quem? Logo com quem, com o Glauber.

Em O Pátio.

Sim, n'O Pátio, que foi o meu primeiro filme. E por aí vai. Também eu acho que a minha posição pessoal, de uma certa forma, é experimental e de vanguarda, com o rompimento de comportamentos tradicionais, que no decorrer da minha vida se faz. E no caso do Dionísio foi adorável, porque ele veio assistir a Savannah Bay aqui na Tijuca (no Sesc Tijuca, onde Contracampo foi conferir e encontrar-se com Rogério Sganzerla), e ele já tinha visto um programa da Marília Gabriela em que eu dava uma entrevista junto com o Rogério, e tinha achado o tipo muito interessante para uma atriz que ele procurava, que era a protagonista que ele chama de uma "diva sertaneja", que é uma mulher que é casada com um candidato a presidente da república e depois se auto-exila, fica vinte anos sem sair de casa. Uma figura. Ele já tinha procurado entre várias atrizes. Viu o programa, achou interessante, soube que eu estava no Rio, veio e disse: "Olha, eu tenho uma coisa bem parecida com essa diva - na verdade, não era parecida, mas em comum tinha o estado dessa mulher que em Savannah Bay era uma grande atriz de teatro do passado e a outra era essa mulher que tinha o comportamento de uma diva, porque ela estava fechada dentro de uma casa, era uma outra história, outro contexto. Foi muito bom, eu adorei e possivelmente vamos fazer um outro trabalho juntos, apesar de Antiga continuar: foi convidada para um festival na Dinamarca e também estamos inscritos no Festival Internacional do Rio, e contamos com a inteligência que já se faz expressa da RioArte.

Helena, você tendo feito recentemente essa peças e os filmes do Bressane e do Sganzerla, e depois de toda aquela fase dos anos 70, eu queria saber o que você vê de amadurecimento, quais são os seus interesses, os desafios que você se coloca?

O que eu vejo é um momento de consciência, existe uma conscientização maior desse trabalho artístico em geral. Tanto dos jovens, no caso do Dionísio ou da minha própria filha Djin, que é uma estudiosa de teatro, até nós, mais antigos. E cada um procurando... Já que estamos falando de nós mesmos, eu acho que ficaram claros caminhos individuais, as diferenças no percurso de cada um. Essas pessoas com quem eu trabalho, e na verdade eu sou um duplo delas, elas têm uma consciência profunda de seu próprio trabalho, então a arte é uma forma de viver para essas pessoas, e para mim também. E essas ambições laterais, colaterais, como a superexposição na mídia e uma divulgação completamente massiva do trabalho já não é mais o objetivo da gente. E também não é o objetivo dessas pessoas, são pessoas que trabalham mais na qualidade. A diferença é pela qualidade do trabalho, pelo empenho em fazer bem feito o seu trabalho. E uma procura também de desmanchar essa linguagem tão tradicional, tão sabonete de cinema, principalmente, porque o teatro é mais livre, é mais barato, se experimenta mais. Ontem eu fui assistir o filme do Júlio [Bressane], o Dias de Nietzsche em Turim, e eu acho que antes de tudo é uma coisa de grande valor fazer cinema com uma outra cara, fazer um filme com uma outra cara. As caras são várias, mas são individuais, não estão procurando diretamente um mito, um espelho na mídia pra seguir. Apesar de eu achar que Godard ainda é o grande mestre, e que quem quer fazer bom cinema tem que ser inspirado nele, de uma certa forma.

E o percurso do próprio Godard é bastante diferente da agitação que era nos anos 60. Ele também está mais consciente, bastante introspectivo.

É, mas é absolutamente revolucionário, pessoal, anárquico, inteligente, anti-americanista (risos), com todas as suas características. E virou meio um sábio, né? Eu acho que o Godard é um sábio do cinema. Vocês viram o Éloge de l'Amour.

Sim, vimos.

É uma coisa maravilhosa, você sai maravilhado do cinema. Um amigo meu falou que saiu do filme como se tivesse saído de Cantando na Chuva, de tanta leveza. E é o oposto, né? Mas dá aquela extrema felicidade. Muito legal.

Falando dessa relação entre cinema e teatro de que você estava falando, como é que você faz a preparação para as suas personagens? Você vê uma diferença fundamental no teatro e no cinema ou é de papel para papel?

De papel para papel, sim. A diferença existe, claro, ela é óbvia. Se você vai representar um pedaço do rosto, um perfil, do que representar com o corpo inteiro, com uma mão. O cinema escolhe qual é a sua parte prioritária para expressar aquele determinado momento, podem ser as costas... Godard filma muito de costas, quase ninguém filma de costas. E eu sempre adorei essa coisa, em Savannah Bay eu começo de costas. Eu fico um bom tempo de costas, eu falo, e as pessoas se perguntam "O que é? O que ela quer?" E a receptividade do público era maravilhosa. Antes de ser feito é que se questionava se aquilo ia funcionar ou não. Mas o público não está tão viciado. Principalmente o público de teatro que vai ver uma peça especial está mais aberto.

Vendo essa mostra do cinema marginal, a gente percebia que várias vezes situações que davam uma grande liberdade para os atores, como os longos planos-seqüência do Sem Essa Aranha ou de Os Monstros de Babaloo. Como eram esses ritos de improvisação?

Era sim, era uma grande liberdade do ator. A atriz, no caso, que era eu, tinha muita participação cênica, como os outros atores que trabalhavam junto. Era uma delícia, uma grande liberdade e o ator existia, como o roteirista, como o fotógrafo... Era uma peça essencial. Claro que é essencial. mas se ouve falar - e é verdade - que o ator é um objeto em cena. Ali eu criava, nos seus movimentos, nas suas palavras. Mas esse já é um outro cinema. Mas voltando ao que você me perguntava, eu acho que é de personagem para personagem a melhor maneira de trabalhar. Eu agora estou querendo trabalhar com economia, com aquilo que eu trabalhei em O Padre e a Moça. Na direção de Antiga, foi muito pedido isso pra mim. Daquele personagem que é importante cada gesto, de como ele pega (faz um gesto de pegar), o movimento tem que ser simples mas estudado...

Um trabalho de contenção de gestos...

De contenção de gestos, isso. Simplicidade e exatidão.

Você uma vez disse que o Joaquim Pedro [de Andrade] pediu para você atuar em O Padre e a Moça sem os braços.

É, sem os braços, não movimentar... Deixar a figura mais neutra possível, contida. Em O Padre e a Moça, a personagem se encontra mesmo numa camisa de força, até que rompe. Rompe e é queimada. Então só no amor que ela consegue cortar essa prisão. O "sem braços" ali fazia parte de uma composição mais monolítica. Nesse sentido de contenção eu também trabalhei na última peça do Dionísio. Apesar de correr, andar, me movimentar e tal, mas dentro de uma simplicidade. Só satisfazia quando limpava, limpava, limpava, fica só aquela coisinha (vai baixando a voz para dar a dmiensão de leveza). Fluía muito tranqüilo, dentro de vários estados emocionais. Sem monotonia nenhuma, porque a vida não pode ser monótona, e a arte ainda muito menos. Apesar de ser minimalista, não pode ter monotonia.

Uma coisa que impressionou a maior parte das pessoas presentes na mostra - falando aqui dos filmes do Rogério que você fez parte - foi a incrível espontaneidade dos atores, e a coisa que se ficava sempre discutindo era o que era definido antes da filmagem, se o Rogério dava apenas diretrizes, se ele te dava toda liberdade ou se todos os movimentos, tanto no espaço quanto na fala, já eram todos calculados de antemão...

Isso é interessante. Sem Essa Aranha foi o filme mais coreografado que eu fiz. Era uma liberdade dentro das linhas que o Rogério ensaiava.

O filme era todo marcado?

Todo marcado.

Quando se fala das coreografias no cinema brasileiro, todo mundo fala de Terra em Transe, de Os Deuses e os Mortos, mas nesse filme tem pelo menos um plano-seqüência que eu acho que é antológico, que é aquele da boate, duma gafieira, que termina com você e com a Maria Gladys debruçadas na janela de frente para uma janela que dava para Copacabana.

Sei, a do bolero... Era uma boate que tinha em Copacabana, clássica...

Tem umas coisas impressionantes no filme, de quando a câmera segue o Luiz Gonzaga saindo da casa, e você fica falando "O sistema solar é uma merda".

Aquele pátio, né? Foi um filme muito trabalhado. Um dos mais trabalhados nesse sentido.

Na verdade houve uma certa ruptura entre O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos para os filmes da Belair, e inclusive em relação ao trabalho dos atores dá pra perceber isso, os dois primeiros filmes são muito montados, muito pensados, né?

Sim, Mulher de Todos sim. Mas também Sem Essa Aranha, que é muito pensado, muito trabalhado. Não teve esse nível de improvisação não. Porque ele queria fazer um filme com oitro planos-seqüências. Então era um filme realmente pra levar a alguma coisa. Copacabana Mon Amour, sim, foi mais solto. O filme tem planos absolutamente inusitados, como aquele do Othoniel Serra fazendo o fantasma de Copacabana. Absolutamente maravilhoso. Os atores rendem muito. Por isso todo mundo quer trabalhar com o Rogério. E depois que trabalha todo mundo quer voltar a trabalhar.

Voltando ao período que vai de 1968 até 1970 você fez um número incrível de filmes, você deve ter feito uns 10, 12 filmes.

Fiz muito, até 1972. Em 72 houve uma outra guinada existencial na minha vida, tomei outro rumo. Daí fui pra Europa, África e tal. Mas de uma forma, sempre muito ligada ao cinema.

Você chegou a filmar na África, não?

Na África, em Nova York, Estados Unidos, na Inglaterra.

Qual o nome do filme da África?

Não sei, acho que não tem nome, é em super-8.

E vocês ainda têm registro?

Sim, o Rogério tem ainda. E mesmo no tempo em que eu fiquei mais afastada ainda, abracei uma verdadeira vida de monge, morava em templo, viajei muito, fui a templos no mundo todo, mesmo assim eu trabalhei com teatro. Dava aulas, dirigia, fazia peças... tanto fora do Brasil como aqui.

Nesse circuito você esteve em que países?

Nos Estados Unidos inteiros, viajei de costa a costa. E fui à Índia também. Voltei a Londres também. Quer dizer, houve um afastamento real do dia-a-dia: não lia jornal, não me ocupada com o que não estava na minha alçada. Era outro trabalho. Me dedicava inteiramente àquilo. Mesmo nisso existia o teatro e o cinema.

E você acha que esse período de afastamento mudou de alguma forma a sua maneira de atuar, de encarar a arte?

Na maneira de atuar sim. Depurou. Estava conversando com um grande amigo meu, um antigo amigo, uma amizade que eu retomei agora, que é o Fauzi Arap. E o Fauzi realmente foi o maior ator que eu já vi em toda a minha vida. E eu me pergunto. Vi muito teatro. Trabalhei com vários atores extraordinários. Mas como o Fauzi, só o Fauzi. E ele desistiu de ser ator, acho uma loucura, inacreditável. E aí eu falei, "Ah, Fauzi, acho que nunca vou deixar de atuar, porque pra mim é uma espécie de religião essa coisa de ser intérprete, né?" E eu falei pra ele que eu fiquei melhor atriz. E ele gargalhava. Isso apesar de ser fã daquela atriz que fez A Mulher de Todos, eu realmente acho que melhorei. Acho que a gente depura esse contato com uma atmosfera menos pesada, material, com tanto espírito de competição. Acho que a competição acaba com você, destrói. Quando você vê um ator ou diretor caindo é porque ele entrou nessa luta de competir, de ser o melhor, o que eu acho a coisa mais grosseira da vida material. Eu estou num lado bem mais sutil.

De uma certa maneira, houve um grande desprendimento, né? Como a gente falou, você está sempre na vanguarda. Você era uma atriz muito conhecida, tinha feito Assalto ao Trem Pagador, e foi fazer os filmes do Rogério e do Júlio, os chamados "marginais"...

E mais que isso, porque nessa época eu era produtora. Meu dinheirinho também entrou nisso.

A Mulher de Todos e O Bandido da Luz Vermelha funcionaram muito bem no aspecto de público.

Funcionaram muito bem, mas depois veio a Belair. A Belair não poderia ter entrado no circuito exibidor porque era uma época horrorosa, e os militares estavam preparando o que tem de pior, que é a pornochanchada. E a Belair ficou por fora, os realizadores também tinham umas opiniões contrárias à ditadura... Senão eles poderiam também ter emplacado.

Os filmes deles têm claramente o interesse em dialogar com o popular: o Bressane trabalhou com o Grande Otelo, O Rogério chamou o Zé Bonitinho, o Luiz Gonzaga, o Moreira da Silva, trabalhou música com o GIlberto Gil...

Isso... Também o Dom Um [Romão]... O Rogério quer fazer com o Gilberto Gil um outro filme... É isso, o último filme de Grande Otelo foi com o Rogério, o Nem Tudo É Verdade.

Você é uma das atrizes mais soltas, mais livres de movimento. Até o Stanislavsky fala isso, que uma das primeiras coisas para o ator desenvolver um processo de criatividade no trabalho ele deve ter um corpo solto e mais livre possível. Agora, eu acho que – falo mais pelo Savannah Bay, que foi onde eu pude ver você em ação por mais tempo nos últimos anos – você atua num certo sentido da contenção e de ter poucos gestos mas todos os gestos muito bem pensados e muito significativos. Vendo A Mulher de Todos, Sem Essa Aranha ou Copacabana Mon Amour o que mais se sente com força é uma certa violência: o grito, os gestos que parecem completamente irrefletidos.

Isso... Mas em Savannah existia esse vulcão interior, que surgia de vez em quando, mas o personagem é fechado, recalca aquilo através de um certo humor. A própria Marguerite Duras fala que as emoções são imorais, às vezes... Mas eu acho que é a mesma pessoa. Se eu não tivesse ido ao extremo de A Mulher de Todos eu não chegaria à contenção de Savannah Bay. Apesar de Savannah Bay ter sido no começo ainda mais contido. Foi o Rogério, inclusive, que abriu, que esgarçou o personagem. Ela era completamente monolítica. Cada riso, cada sorriso, fosse o que fosse, estava tudo sob a égide da contenção. Savannah Bay está mais próxima de O Padre e a Moça. E A Mulher de Todos era o contrário, era a anarquia do corpo, e também Sob o Signo do Caos, que é mais nessa linha de A Mulher de Todos.

Você atua com quem nesse filme?

Tem várias pessoas. Tem a Giovanna Gold, tem a Camila Pitanga, tem o Guará, o Otávio Terceiro, que já trabalhou com o Rogério antes. E é isso, tem esse prazer de brincar com o corpo e com o movimento.

Você filma há trinta e cinco anos com o Rogério. Você vê uma mudança, uma diferença na maneira como você trabalha com ele desde O Bandido da Luz Vermelha a Sob o Signo do Caos?

Existe uma mudança sim. E existe também uma coisa inacabada nessa mudança, algo que não está acabado. Por exemplo, é claro que eu passei de uma jovem, de uma menina para uma senhora de sessenta anos. Agora, corporalmente, na questão dos movimentos, houve um apuro com o tempo Apesar da minha formação ser uma formação de dança – então já se esperava que eu fosse por aí –, eu desenvolvi com o tai-chi-chuan, com lutas marciais internas da tradição chinesa. Eu até aprimorei e mantive todos os movimentos técnicos da juventude. Então eu fiquei, de uma certa forma, uma atriz bem original. Já era, talvez, e continuei sendo meio original. Porque eu sempre gosto de, no meio de uma atuação clássica, sair para um lado mais de experimentação. Então isso com o Rogério, sempre foi assim. Mas agora, na maturidade, eu não vejo que está completo o meu ciclo com o Rogério. Em Sob o Signo do Caos, acho que as pessoas que gopstam do meu trabalho vão continuar gostando, mas ainda é uma transição. Eu quero pegar agora uns papéis de velha, como atriz já em outro estado da vaidade, da contenção. Eu acho inacabado por isso, porque tem ainda essa fase pela frente. O Rogério, como ele também se aprimorou muito na pesquisa dele, na sinceridade dos filmes, de fazer exatamente o que quer, ele ainda nesse sentido está jovem, né? Tem muita coisa ainda que ele pode fazer, e esse desejo está forte e se restaurando. Porque também houve um aspecto de decepção com a arte, com a dificuldade de fazer arte, acho que tanto da minha parte como da dele. E agora a coisa parece que ficou melhor. Eu já estou assumindo a minha maturidade, estou nela e está sendo ótimo, e ele está cheio de vigor para fazer um cinema tão interessante como sempre fez.

Você falou da sua formação em dança... Queria saber um pouco mais de como você começou, como você ingressou no teatro e depois no cinema. Qual o tipo de formação que você teve?

Eu fiz teatro e dança. Dança contemporânea, dança moderna, mas que sempre inclui uma base de clássico. Isso na Bahia, com grandes professoras, grandes figuras da dança moderna. E também fiz Afro, até mais ou menos 1972. Em 1972 eu conheci o tai-chi-chuan, e foi uma coisa de uma dedicação, que não pára, vai até hoje, o tempo passou, já são vinte anos e eu ainda me dedico, e me dedico, tendo aulas com fulano, cicrano, faço seminários com aquele mestre em não-sei-onde, corro atrás. Faço algumas armas também, faço espada, faço leque...


E no teatro? Você fez teatro com o Martim, com o Gianni Ratto, e que idéias circulavam? Que tipo de preparação se fazia lá?

A formação foi clássica, stanislavskiana e Actor's Studio, o Martim tinha contatos com o Arthur Miller, tocava a campainha da casa dele e vinha a Marilyn abrir, era uma pessoa íntima de grandes personalidades da época, um pernambucano que sofreu muito porque era viado, e todo mundo, até os comunistas, tinham um preconceito terrível.

Isso por volta dos anos 50?

Quase anos 60. Ele tinha essa fama mas não dava bandeira de jeito algum, comportava-se como uma freira, mas mesmo assim o pessoal perseguia ele, nos 4, 5 anos de escola. E ele era assim, tinha uma formação stanislavskiana, via Actor's Studio, e com grandes mestres de cenografia, de dicção. Brutus Pedreira, que trabalhou em Limite, nos ensinou música... Kollreuter... A formação era a melhor possível, a mais ampla. Teatro deve ser isso, uma formação ampla. E com a Lina Bo Bardi, diretora do Teatro Castro Alves, onde eu trabalhie várias vezes. Ela também era professora da escola... Uma formação... nossa! O aluno já saía dali preparado para a vida, abria a cabeça de toda a garotada baiana da época.

Em que momento apareceu o não-realismo? Porque A Mulher de Todos, por exemplo, é muito mais pautado no ator como ator do que como personagem... O filme já começa com você dando todos aqueles chutes no Stênio que já é uma quebra do modelo clássico do ator...

Mas n'O Bandido já tinha o não-realismo. Aliás, o roteiro d'O Bandido foi escrito antes da história do bandido da luz vermelha. Aí apareceu nos jornais, as coisas se encaixavam e isso foi usado. Mas nem podia ficar muito claro senão os advogados do cara iam em cima. Mas será que eu fiz algum filme realista? O Padre e a Moça?

A Grande Feira...

É, A Grande Feira, mas O Pátio não, São Jerônimo não... Teve o Assalto ao Trem Pagador...

Você tem vontade de pgar um papel realista?

Tenho, eu gosto.

O Maria Moura vai por esse lado?

É uma comédia, eu trabalho com o Jorge Dória, ele arrasou, fizemos uma seqüência maravilhosa, eu torço para que o filme saia. Eu também penso agora em fazer um filme.

Dirigir?

É, agora é tão difícil... Que bom se não precisasse de tanto dinheiro, se tivesse um instituto.

E em que pé está?

Bom, as idéias vêm vindo, vêm se encaixando uma na outra, às vezes desmancham, porque tem muito a ver com uma experiência pessoal, eu gosto muito de um livro de uns baianos sobre a juventude minha e de Glauber. Tem um personagem chamado Leninha, e o livro conta coisas até intimos, emocionais minhas, num trabalho de pesquisa... Tem coisas que nem eu sei como foram parar lá. Esse casal de irmãos dramatizou a época, 57, 58, que é exatamente o período em que eu estive com o Glauber. Então eu acho que daí pode dar um docudrama interessante tendo na cidade de Salvador um elemento importantíssimo. Pega fragmentos dessa história e incluir nessa cidade de Salvador que começou a dar virada, porque ainda era muito primitiva. Isso termina em 1970, por aí. Alguma coisa ligada à Bahia. E eu tenho comigo um roteiro, também, que foi feito com um rapaz de teatro, muito legal, saiu uma coisa bem interessantezinha. De um grupo de teatro no Vidigal.

O Nós do Morro?

Não, simplesmente um grupo de pessoas. Uma menina, surgiu a história de uma menina, todo mundo gostava e tal, eu mandei pra RioFilme naquela época e não foi aprovado. Deu um desânimo... Quer dizer, a gente sabia que podia acontecer, mas era ótimo o trabalho deles...

A gente falou um bocado do teu trabalho com o Sganzerla, mas e o teu trabalho com o Bressane, da Belair até o São Jerônimo? O que ele te pede, qual a margem de liberdade que ele te dá?

No São Jerônimo ele falou, "Olha, eu quero a imagem mais contida possível, as mulheres são neutras". E a voz. Nos outros filmes, a contribuição era grande.

Não era tão marcado?

Era também. Mas não era coreografado, como no Sem Essa Aranha, porque o Júlio é mais fixo, mais contemplativo. E ótimo de trabalhar. É muito legal.

Qual o filme que você teve mais prazer fazendo e qual é o filme que você vendo acha que tem mais de Helena Ignez na tela?

A Mulher de Todos tem bastante... É, acho que A Mulher de Todos.

Também foi o que te deu mais prazer fazendo?

Prazer eu tenho em todos, eu tive muito prazer em fazer Sob o Signo do Caos também. E adorei fazer também o filme do Júlio, porque não é fácil fazer o que ele pede, aquela voz integrada no corpo. Mas o prazer para mim é o mesmo.

Só mais um último comentário: eu acho incrível que, logo depois de vocês fazerem A Mulher de Todos, o filme do Rogério e o seu personagem mudaram o perfil de atuação de cinema no Brasil. Eu não sei se é uma influência da época ou do filme, acho que dos dois, mas um monte de atrizes caminhou no sentido dessa espontaneidade maior. Logo depois a Adriana Prieto vai fazer com o Roberto Santos Um Anjo Mau, onde ela também usa muito essa violência feminina, a Anecy Rocha no filme do Walter Lima Jr. [A Lira do Delírio], várias atrizes que seguem por esse caminho. Você é bastante pioneira. Eu não creio que haja um filme antes de A Mulher de Todos que apresente uma força tão grande na presença da mulher.

Foi muito forte ter feito A Mulher de Todos. Na época não foi mole não. Muito preconceito, muita coisa que acontecia. E a sensação não era muito cômoda porque eu ganhava muito prêmio, recebia prêmios nos festivais. Não era simpático. As minhas amigas estavam lá... Mesmo com O Padre e a Moça aconteceu isso. Você sabe, a Fernanda [Montenegro] fala isso, que ganhar prêmios não é cômodo. Nessa época eu queria romper mais. Eu queria botar pra quebrar a linguagem estabelecida, em todos os sentidos. E nisso, evidentemente, tinha também o impulso destrutivo, e você falou aí no meio o nome de duas pessoas que morreram ainda jovens, no começo da jornada, que também seguiram esse caminho, a Anecy e a Adriana. Eu acho que você tem que romper mas tem que manter uma chama de amor, senão fica só destruição e se volta contra você mesma. E eu espero, como a vida imita a arte e a arte imita a vida, que hoje fique o lado realmente engraçado, divertido, positivo. Naquela última sessão de A Mulher de Todos na mostra...

... As pessoas riram muito...

Riram muito, nunca vi rirem tanto (risos). É muito engraçado.

Porque o filme também é uma declaração de amor.

É. E ali eu também estava amando profundamente. Mas não era Rogério só. O amor dele foi se depurar com o tempo. O amor mesmo era o da arte, de passar pelas pessoas, de vontade de chegar a elas, é meio interpessoal. E também um momento extraordinário do sentido particular, porque afinal era o amor da minha vida que eu tinha encontrado. Eu vi agora a Malu [Mader] no Bellini e a Esfinge? Dentro do convencional, ela está tão feliz de estar fazendo que é adorável ver. Antes de tudo, ela tem uma tal alegria de ter chegado a estar fazendo o que ela queria. Isso passa. Não se torna mais um trabalho. Isso tinha em A Mulher de Todos muito forte. No caso da Anecy, em A Lira do Delírio, que é um dos filmes mais bonitos do cinema brasileiro, tinha quase uma premonição da morte. Eu não consigo nem ver esse filme direito.. .Tinha a fragmentação do personagem. Mas era diferente do meu filme com o Rogério. Mas é, eu acho que houve uma influência grande, em vários filmes, algumas inconfessadas, outras confessadas, até bem mais tarde.

Eu acho interessante também essa coisa da chanchada, que o Rogério retomou os atores, um certo fascínio por um tipo de personagem como Zé Bonitinho que está lá. Quer dizer, tinha esse interessa para compor o personagem.

Tinha. Os grandes mestres são os cômicos populares. Esses são maravilhosos. Agora eu estou rindo porque num determinado dia no ensaio de Antiga, que era muito sério, muito comportado do ponto de vista cultural, eu falei, "Mas isso aqui está parecendo A Praça É Nossa!" E as pessoas ficaram assim, "Logo com o que você foi dizer que nós estamos parecidos? A Praça É Nossa?" (risos) Porque era realmente quatro chanchadeiros ali naquele palco. E é ótimo, isso existe no ator brasileiro. Acho que a característica dele é pelo povo, né? Quer dizer, a gente não pode se desvincular do popular. Tem alguém mais pé no povo do americano do que o Sean Penn? É um típico neurótico americano. É um grande ator. Ele é completamente enraizado na sua cultura.


"Esta mulher é nossa", dizia O Cruzeiro.

Entrevista realizada por Daniel Caetano e Ruy Gardnier no dia 9 de abril de 2002.