Você começou sua carreira fazendo o curta Olho por Olho e fotografando o filme do Rogério Sganzerla, Documentário, e o filme do Otoniel Serra, que passaram no Rio... Passou no Festival JB, exatamente, passaram os três. Você chegou a conviver com o pessoal da escola São Luís, né? Eu cheguei a dar aula lá algumas vezes – até o padre me mandar embora. É mesmo? Deu aula de cinema? É, imagine, sem saber nada... Quarenta anos depois, como você avalia esse primeiro momento? Você está me perguntando como? O que eram esses três filmes, como eles surgiram? Como é que eles surgem e como é que você olha eles hoje. Porque você deu alguns passos seguintes bastante diferentes. O que eu posso te falar é o que eu... Primeiro que é isso: são quarenta anos, né? E se eu olhar para esse período da minha vida... Eu hoje, eu olho um pouco nostálgico, tem umas coisas afetivas assim que eu sinto... Mas olhando hoje para os filmes o que me parece é que, na verdade, eram coisas um pouco diferentes os três, apesar de ter trabalhado nos três, quer dizer... Falando assim: a atitude do Olho por Olho, da minha parte, eu acho que tinha uma revolta, uma raiva, uma impotência, uma sensação, em suma, de achar um caminho, uma solução, quer dizer, era uma coisa meio pessoal, de um sentimento assim... De ter que romper algo para poder chegar a alguma coisa. Já o filme do Rogério me parece um filme mais pensado racionalmente, digamos assim, com uma finalidade... O Rogério era uma pessoa com uma formação de cinema, naquele período, já bastante consolidada – já era um período em que ele estava procurando escrever nos jornais, ele escrevia em uns outros jornais na época, eu me lembro. Então é uma postura um pouco diferente, é uma pessoa um pouco mais consciente, vamos dizer assim, do que seria estar fazendo cinema. Para mim ainda é uma explosão pessoal, uma coisa meio intuitiva e pessoal. E para ele, me parece que ele já tinha um objetivo... O cinema já era uma coisa externa, ele tinha uma formação do cinema americano, uma coisa assim. O filme do Otoniel, eu acho que o Otoniel era mais poético, mais... A palavra não seria deslumbrado, mas mais fascinado, vamos dizer assim, pela literatura, pela revelação do que ele via, do que ele encontrava no mundo. Então são três pessoas bem diferentes nesse período. A proximidade da gente... Com o Rogério eu tinha uma proximidade muito grande, afinal a gente estudava na mesma escola, a gente se via todos os dias, ele morava em uma pensão na frente ali na Maria Antônia, almoçávamos ali na pensão, ele freqüentava a minha casa, eu ficava na pensão e é isso, uma relação de amigo, uma coisa muito próxima, de amigo. Do Otoniel eu já era um pouco mais longe, era mais uma pessoa, eu não me lembro exatamente, o Otoniel acho que era jornalista no Estado na época, acho até que foi uma pessoa que deve ter ajudado o Rogério lá, não sei direito, isso tem muito tempo. Quer dizer, no fundo, eu sinto essa diferença vendo hoje, na época, eu acho que não tinha a menor idéia dessa distinção. Eu estava dirigindo um e fazendo fotografia e câmera dos três. E nesse ponto eu era a mesma pessoa, apesar de estar olhando para situações diferentes. Mas a minha abordagem como pessoa, a minha maneira de estar fazendo, era a mesma expressão que, eventualmente, eu botei no meu filme. Mas a estrutura da cabeça dos outros era diferente, e o filme sempre resulta em outra coisa. O Rogério, com essa sua leitura e capacidade de olhar um pouco como os filmes eram estruturados e com conhecimento de montagem, ele, na verdade, montou os três. E se eles têm, vamos dizer assim, essa concisão narrativa que eu acho que os filmes têm, foi o Rogério que fez. E a montagem foi uma nova estruturação do filme. O olhar é uma coisa, a montagem é outra, né. Eu sinto esses filmes assim. Mas eles eram totalmente caseiros. Agora eu fiquei curioso em relação à sua formação de cinema, porque você falou que o Rogério já era... É, eu me lembro dele... Ele, por exemplo, era uma pessoa que assistia aos filmes, mas ele via muito analiticamente o cinema. Eu sempre... por exemplo, a minha formação como cinema: não estudei cinema, eu estudei engenharia e arquitetura. Mas desde moleque gostava muito de cinema, ia a cinema, fugia de casa para ir ao cinema, entrava em filme que não podia. E assim, não digo todo dia, mas me lembro que quando a Cinemateca era na Sete de Abril, lá em São Paulo, eu assistia integralmente às programações da Cinemateca, então assistia a cinema polonês, japonês, cinema alemão, cinema indiano. Mas era uma coisa meio de descoberta, de revelação, algo para o qual eu não tinha um distanciamento crítico, era um envolvimento emocional, eu me identificava, adorava o filme, saía... Então, era o que o filme me provocava pessoalmente como revelação, como descoberta que me ligava ao filme. E não a técnica ou a fotografia ou não sei o quê, tudo isso estava lá, mas... Mas estudei, fui aprender fotografia, estudei... Mas era uma coisa de fruição mesmo... Mas era uma coisa de vida mesmo. Aquilo que tivesse de vida era o que me dava desejo de fazer também, como se fosse um caminho de conhecimento mesmo, de descoberta. E nisso, falando agora, eu identifico que hoje continua sendo a mesma coisa. Isso lembra Bang Bang. É. E esse filme atual mesmo, o Serras da Desordem... Cada filme é de novo, é de novo, é do zero, eu não sei nada, entendeu. Cada história, toda vez, é um reencontrar – claro que no caminho do fazer você reencontra coisas que você conhece, mas confesso que, se eu encontro alguma coisa que eu conheço e vejo que me aproximo, eu fujo. Porque já conheço aquilo. O interesse é descobrir. É, ir atrás. E o fato de ter ido, de ter me dedicado a essa coisa um pouco dos índios e parar lá no mato é porque é um desconhecido, o outro, esse outro que, de fato, tem uma outra cabeça, uma outra formação, uma outra... Apesar de ser um homem igual a mim, a gente é a mesma máquina, vamos dizer assim. Essa possibilidade de encontrar algo que é uma revelação é o que me motiva, digamos. Não falar do conhecido, falar do que você não conhece ainda. É. Eventualmente falar do que eu não conheço, baseado no que eu conheço. Aprender... Aprendê-los. É curioso que o Carlão Reichenbach, seu amigo, fala justamente outra coisa: que ele se recusa a filmar o que ele não conhece. O seu caminho seria então um olhar mais... Não vou dizer de antropólogo, mas uma coisa mais... É, você falou uma coisa de antropologia: eu nunca olhei assim, porque minha formação não é antropologia, mas me lembro de uma crítica, uma análise que o Jean-Claude Bernardet fez do meu filme Jouez Encore, Payez Encore que é exatamente isso, ele fala da antropologia de nós mesmos. E isso me marcou porque eu acho que ele bateu em uma tecla certa nesse ponto: é uma descoberta da gente, não é do outro. O outro é um instrumento para o teu conhecimento, para o teu auto-conhecimento, digamos. Mas o teu auto-conhecimento, na verdade, é uma descoberta na vida, porque o teu auto-conhecimento é relativo à existência que você tem. Mas a partir de olhar para outro. Da parte de fora, não é uma... Senão, sei lá, senão você não vive. Seu filme seguinte foi Blá-blá-blá... O filme seguinte foi Blá-blá-blá... Foi filmado em 67 e ficou pronto, se não me engano, em 68. Tem muito a ver com determinados filmes políticos da época, como o Terra em Transe... É, você vê que tem o Paulo Gracindo. E um filme do Bressane também, o Cara a Cara. Mas já tem essa coisa, novamente, de você não ter muita certeza do que está comunicando de um mundo com o outro. A idéia do filme é essa. A idéia do filme não é fazer um discurso político conseqüente, é mostrar a inconseqüência da retórica do discurso político, que é igual em qualquer lugar. Tanto que o filme não é um discurso... Na soma, vamos dizer assim, por mais que a gente use frases de outras pessoas e você coloque em um texto como sendo a sua expressão, quer dizer, você fala a frase, você bota a sua emoção, você bota o teu conhecimento interior, a sua motivação; mas o Blá-blá-blá, ele é inteirinho costurado de frases conhecidas, que vão de Cristo a Buda, a Castelo Branco, a Hitler, a Henry Miller, a... Se você buscar internamente, ele é uma costura de textos, de conjuntos de coisas que foram, na minha cabeça, construindo um discurso que, na verdade, é totalmente contraditório, o tempo inteiro é... E me parece que ele se perde. No final ele não tem mais como fugir do próprio discurso. No fundo, a frase dele é um pouco o que nós estávamos falando atrás... Como é que ele termina? Eu me lembro da última frase do filme, é uma frase do "Primavera Negra" do Henry Miller, que fala assim: "Essa noite eu vou meditar sobre o homem que eu sou". Então repito a história dessa busca, de ir atrás – qualquer que seja o caminho, é uma tentativa de conhecimento. E o conhecimento do mundo se faz através do teu autoconhecimento porque, na verdade, o mundo é externo, mas o teu relacionamento do teu lado interior com o mundo externo é o que faz o conhecimento. A violência é muito presente, né? Imediatamente pré AI-5. O AI-5 é de 68? É de 68... E aí começou o ciclo do pessoal do Cinema Marginal, começou a haver aquela produção, aquele surto de filmes... Mas você sabe de uma coisa, eu fico pensando assim... Os momentos, nos períodos mais difíceis, mais instáveis, são os períodos onde, pelo menos naquele momento para a gente, é quando você tem mais vontade de dizer alguma coisa. Nos períodos em que está tudo bem, digamos, em que você está feliz, que não tem que batalhar nada, quer dizer, batalhar nada não existe, mas quando você está muito equilibrado, aí vira... Você precisa mexer a coisa para ter um pouco de turbulência, para poder existir de novo uma motivação. Então, no fundo, eu me provoco. Ir fazer um filme lá no Maranhão agora é uma provocação comigo, inclusive física, para ver se eu ainda tenho a resistência de encarar... Serras da Desordem no Maranhão então foi uma provocação pessoal? Essa é uma maneira de dizer, mas é algo que te diz assim: "Estou vivo, ainda tenho que aprender, ainda tenho força para andar, ir atrás, não importa onde é". A Gente sempre tem um pouco de auto-afirmação, buscando justificar a existência, ter um sentido pra estar fazendo as coisas. Eu acho que a gente interfere; eu não faço um filme para passar no cinema e dar dinheiro. No fundo, me interessa que esse filme interfira em alguma coisa, provoque alguma coisa, senão uma reflexão, um momento de dúvida, um momento de questionamento seja ele qual for. O que quer dizer isso? Basta esse espacinho na cabeça de alguém, que não seja uma certeza que algo, então, torna a viver. Quando você tem a certeza, pára, a coisa morre. A palavra não é morre, é pára, estaciona. Tem uma frase do Artaud que diz que as idéias claras são idéias mortas. Artaud era uma pessoa que eu adorava, também lia. Era uma presença que era presente nessa época. No livro do Jairo [Ferreira, ndr], Cinema de Invenção, tem vários discursos assim. Tem um texto do Nelson Aguilar sobre Bang Bang e também tem um texto do Carlão sobre o filme do Mojica, O Ritual dos Sádicos, e os dois usam o Artaud como uma referência. Eu percebi que, na época, havia um certo interesse pela escrita dele. Pela aventura da vida dele, né? Afinal, o livro é a expressão... A própria escrita é... A vida. E também ser a expressão possível, que, ainda assim, não é ideal. Ele fez um texto em certo momento dizendo que toda escrita é uma porcaria... É, porque também é um momento que pára, na hora em que você escreve uma palavra, se ela é definitiva, se ela significa simplesmente o que está escrito, a palavra acabou. É como o que você falou do filme. Agora, por que a poesia vale? Porque a poesia te joga brechas, te dá espaços, ela não te dá certezas, ela não te dá pedras, ela te dá o espaço entre as pedras, vamos dizer assim. E o seu filme tem a ver com isso. Acho que sim. No Bang Bang isso fica especialmente claro, porque ele insinua que vai acontecer uma certa história, parece que tem um enigma para você decifrar na história, mas, na verdade, quando o cara pára para explicar a história, atiram uma torta nele. Pois é, se chega a ter uma explicação, não me interessa; me interessa é continuar com o caminho aberto. E, olha, escrever o roteiro do Bang Bang, ele não é o filme, aliás nenhum roteiro é porra nenhuma do que o filme resulta. Mas o roteiro do Bang Bang começou com uma historinha simples, uma historinha meio policial: uma perseguição, um personagem que a gente não sabia direito quem era, tinha três bandidos que queriam o que ele tinha, era um pouco cômico... Na verdade, a inspiração, veja bem, você me fez lembrar disso agora, era algum conto policial desses bem vagabundos, do tipo que vende em banca de jornal, aquelas coisas assim, que tinha um personagem que era um detetive, mas ele era meio Carlitos, ele era meio... Uma coisa assim... Veio essa lembrança agora, meio sem ligação. Foi isso que serviu como inspiração, você quer dizer? É, foi a partir dali que... É isso, me veio em mente agora... O quê que isso amarrou com Bang Bang? Eu não sei, porque Bang Bang não tem nada a ver com isso. Mas olha, escrever o roteiro, porque precisava de um roteiro e etc., foi um processo sofrido. Era uma coisa assim, da folha branca na máquina de escrever, onde escrever uma frase lógica ou uma historinha lógica era uma coisa que eu não queria botar naquela página. E isso se manteve até o fim, até filmar?... A coisa dos improvisos do Pereio, já tinha idéias escritas?... Bom, primeiro porque era uma época de muita maconha, muita droga, muita... Era um pouco – muito não significa o excesso, não significa o junkie, significa simplesmente a liberdade e uma tranqüilidade com isso, não se sentia... Apesar da época de repressão. Não tinha culpa, no caso. Não, absolutamente. Era uma conquista, era algo que você estava enfrentando porque sabia também da dificuldade, mas sem sentir a repressão. Porque era muito jovem também, 21, 22 anos, nem me lembro; então você não pensa nas conseqüências, na verdade. E o Bang Bang, toda noite, isso eu me lembro bem, o que estava escrito, o que devia ser filmado, sei lá, digamos: Pereio e Jura Otero no bar vão conversar. Tinha uma seqüência escrita, diálogos e tal. Mas aí, na noite anterior, aquilo ali não era satisfatório. A cena era reescrita, totalmente reescrita de noite como base pra no dia seguinte poder chegar para o Pereio, para a Jura ou para as pessoas e simplesmente poder dar para elas, botá-las em uma situação e dar para elas, vamos dizer assim, indicações dos sentimentos que eu gostaria que aquilo expressasse – só. E, de resto, eu devo, de fato, a essas pessoas... o Bang Bang não é um filme feito só por Andrea. É costurado por mim, etcetera e tal, mas ali tem uma criatividade que essas pessoas botaram. Eu acho que elas puseram ali um pouco da vida delas. Eu tive a oportunidade, por exemplo, o conflito afetivo entre Pereio e Jura era um conflito real; eu simplesmente aproveitei que eles não estavam bem, digamos assim, discutindo, brigavam e etc., para colocar aquela impossibilidade de se lidar, mas com o desejo de continuar se relacionando. Eu estava lembrando agora: eu estive em Belo Horizonte há umas duas semanas ou três semanas quando teve uma Mostra de Cinema Marginal, um Seminário, e revi o Ezequias Marques, que é o velho baixinho que faz o ceguinho. Eu não sabia... O bandido cego que fica atirando. É, o bandido cego. Na época, era um ator mineiro, mais jovem, me indicaram ele, eu filmei, mas eu nunca me aproximei humanamente, digamos assim, a ponto de conhecer a vida dele, de ter muito tempo para conversar no dia-a-dia. Porque aquele filme foi feito em onze dias, se você pensar foi uma pauleira. E, agora, que ele está velhinho, eu estive lá, me convidou à casa dele e me contou que quando ele era menino, aos onze anos, uma coisa assim, ele fugiu de casa para acompanhar um circo. História clássica, né? (risos) Porra! Isso me deixou muito feliz porque eu entendi de onde que surgia o personagem que ele consegue fazer. Ele é um Carlitos, ele é um circense, ele tem toda essa história assim. Se essas pessoas não tivessem essa carga emocional, essa carga de busca e de ansiedade de vida, o filme não seria o que é. Todo mundo ali era assim, os atores, digamos. A Jura foi uma cigana, filha de ciganos, raptada quando criança na vida real, que não sabe quem eram os pais, aonde viveu, em suma, era reichiana já naquela época. Pereio, o doido que sempre era, que todo mundo conhece e admira... Acho que ele nunca tinha interpretado ele mesmo. Era o doido sadio, o louco sadio mesmo. Mas o filme cria a persona Pereio, não me lembro antes de um filme em que ele usasse a persona dele, a presença Pereio: aquela coisa de "o Pereio chegou". Engraçado, você falou uma coisa, acho que esse filme de fato marca ele também porque a partir daí ele dificilmente consegue separar o Pereio dos papéis que ele faz. Ele faz sempre o Pereio. E antes não, tinha feito Os Fuzis... Antes ele se forçava a um outro papel. Nesse filme é muito marcante isso, a coisa se mistura. Tinha o Milton Gontijo, que é uma pessoa também sofrida, teve paralisia quando era criança, teve um puta acidente, viu um amigo morrer tomando um tiro. Ele faz o papel de bêbado, no bar – esse ficou meu amigo até a morte. Ele é dublado pelo Pereio, né? É. O Pereio é que faz as duas vozes. É uma espontaneidade que na verdade é encenada, porque é filmada e depois é dublada, é refeita. E aquilo tudo, por exemplo, o telefone, ele surge quando o plano está sendo rodado. O diálogo surge na improvisação, ele não existia no texto escrito. A essa ponto a gente estava solto, a ponto de incorporar na hora, já filmando, a câmera rodando, não é um pouco antes, não, estava tocando: "Ih, olha, o telefone!" (rindo). E o cara ia atender e eu disse: "Não, deixa tocar!". É curioso que daí em diante a sua produção ia se voltar para os documentários... Olha, uma das minhas preocupações, um esforço que eu fiz, era a tentativa de esvaziar. Na medida em que eu estava escrevendo a história do Bang-Bang, a idéia era extrair, não deixar que aquele signo, ou aquela frase ou aquele personagem fossem óbvios. Toda vez que algo ficava óbvio, algum sentido ficava muito claro, então não, então eu tirava fora. A questão era: "Como que esse símbolo, essa imagem, pode ser mais ambíguo possível, mais múltiplo possível na cabeça de quem assiste?". Esse era o objetivo do filme, isso era consciente, deixar as possibilidades de significados abertas à interpretação. Tanto que o filme, na estrutura em que foi escrito, não tinha necessariamente essa ordem que tem do modo que é exibido – inicialmente eram rolos separados, que poderiam ser exibidos independente da ordem do rolo. Cada conjunto era um conjunto, entendeu? Eram seqüências que podiam passar na ordem que fosse. Eu fiz a experiência, não de todas as possibilidades porque isso seria inviável, mas fiz isso na moviola – eu trocava os rolos, passava assim e assado, e a história persistia, o que eu queria estava lá... E chegou a fazer isso em sessões públicas? Uma vez, no Belas Artes, aí eu tive problemas, o projecionista reclamou: "Mas tem que ter uma ordem". Porque o cara não pode pegar um rolo qualquer e botar, então eu fiz em rolos duplos, e tentei que tivesse a alternativa de variar entre os quatro rolos duplos, mas aí numeraram e mantiveram uma ordem. O Glauber Rocha quis fazer o mesmo no A Idade da Terra. É, eu li isso depois, o Ricardo Miranda me contou essa história, de que tinha essa intenção também de poder ser projetado sem ordem de rolos... Sobre os seus documentários, o Fernão Ramos já escreveu um texto fazendo uma aproximação com o Cinema Direto norte-americano... Bem, mas isso são os outros que interpretam... Na verdade, eu nem leio muito o que escrevem sobre o que eu fiz, porque senão eu acho que me atrapalham, porque já faz uma certa lógica, e eu tento escapar um pouco dessa lógica consecutiva, de A+B=C, de 1+1=2. Não, 1+1 é igual a quinze, a sete, eu não sei! Depende de quem é um e quem é o outro um. Eu vou descobrindo, o caminho vai se abrindo, a coisa vai se revelando. Por exemplo, no Bang Bang, o plano em que o jipe corre, eu não fiz o percurso da estrada inteiro antes de filmar, mas sabia que tinha uma montanha lá no fundo que dava um rumo, um sentido. O que eu queria era que houvesse uma aceleração nesse sentido, então o que eu fiz foi pegar a música do Hatari!, aquele filme do Howard Hawks, e botei um cassete ao lado do Pereio no jipe, e disse: "Pereio, vai ouvindo a batida e vai pisando fundo e vai acelerando conforme a batida da música, e manda ver!"... (risos) A câmera então seguia tão incerta quanto o personagem? Bem, eu ia acompanhando... Eu sabia quando o rolo estava chegando no fim e queria enquadrar meio de lado, pra poder dar o corte. E quase não deu, porque o Pereio acelerou mesmo. E eu estava no outro carro com o Thiaguinho na câmera, o Thiago Veloso... E o jipe é um carro que escapa ao controle. É, o jipe escapa, ele tem que acelerar. Eu estava numa C-14, e a gente tinha botado um pranchão na frente dela pendurado com dois cabinhos de aço, mas a prancha estava a essa altura do chão (sinaliza uma altura baixa), e aquilo é chão de terra. Isso hoje eu chamo de irresponsabilidade, de alguma maneira. E o Thiaguinho sentado, com um tripé ali no pranchão, com uma proteção pra não levar pedra, e a gente deu sorte porque nenhuma pedra bateu na lente... E eu dirigindo a C-14 e olhando pro Thiago, e a minha preocupação inicial seria seguir o carro do Pereio, mas naquele momento a minha preocupação de fato era: "Caralho, se esse negócio der uma bicadinha no chão, nós todos vamos, ele antes e depois...". Voava todo mundo!... (risos) Então... A gente teve sorte, o que eu posso dizer? Não aconteceu nada com o Thiago, e quando a música abre... Mas você estava perguntando dos meus documentários. Olha, é uma coisa pessoal. Naquela época, meu pai faleceu, e a gente fica querendo afirmar alguma coisa, provar que é capaz de ganhar a vida. Tinha naquela época aquela coisa de categoria especial para os filmes, de curta-metragem e documentário, e eu fiz uns quatro com outras pessoas. A idéia era fazer e vender o filme, levantar dinheiro e continuar trabalhando. O filme com a Ruth, Jouez Encore Paiez Encore, que foi finalizado apenas em 1995, foi montado em 1975. Como foi a produção dele? Ele foi feito em vídeo com a primeira camerazinha da Sony, fita de rolo, meia polegada. A Ruth pagou o transfer para 16mm e montei na moviola. Me mudei de São Paulo para o Rio para fugir dela na montagem. Não queria a presença dela, não era sobre ela que eu estava fazendo o filme. Essa era a condição, não ser sobre ela. Documentei o grupo, as relações, não era sobre a peça com ela. E tive problemas. Quem salvou esse filme foi o Paulo Emilio. Ele exibia filmes brasileiros nas aulas, um dia ele foi exibir o meu filme e a Ruth mandou a polícia, porque ela não queria a exibição. A sorte ou azar é que tinha uma cópia de um filme do André Luiz Oliveira, e levaram o filme dele em vez do meu. Paulo Emilio sumiu com a cópia, escondeu na casa dele e ficamos sem saber do paradeiro da cópia. Uma dia eu recebo um telefonema, era 1980 e pouco, e a Lygia Fagundes Telles me liga, dizendo que encontrou um pacote com um bilhete do Paulo Emilio para mim. O Paulo Emilio salvou o filme... Mas era a versão mais longa? Era, existe a versão integral, que foi remontada. Tive de concordar com ela em tirar duas cenas para poder ter acesso ao negativo, que ela seqüestrou. A fita de vídeo também desapareceu. Bem, eram cenas inconvenientes para ela e eu retirei, mas fiquei com os negativos, que não mando nem para a Cinemateca. Mas eu tenho de dizer que, antes de ver, ela não interferiu. Queria ver, antes de pronto, mas não viu. Acho que o documentário permite eu me inserir na situação. Você pode estudar, mas, quando está filmando, você não sabe o que acontecerá – é um primeiro e último encontro com o entrevistado. Com o Conversas no Maranhão é a mesma coisa. Eu nunca tinha ido, não sabia a língua dos índios e ficamos um mês sem fazer nada. Estudei um pouco, mas não teve nada a ver com o filme. Tivemos um mês de relacionamento, fui adotado por uma família, morei com eles, a gente saía para caçar, depois sentávamos à noite para fumar um baseado e olhar as estrelas... Porque eles são altos astrônomos, não sei se vocês sabem. Eu aprendi a observar os satélites porque eles me ensinaram, eles sabem quando um corpo estranho aparece no céu. Vivem cantando e dançando... Depois de um mês, sem nunca terem sido filmados ou visto TV, expliquei o que tinha ido fazer. Eles não têm uma palavra para imagem, então, tive de explicar como a câmera captura a imagem, prende ela lá dentro e depois exibe em outro lugar. Eles entenderam no ato e começaram a fazer reivindicações. Você comandou a câmera ou deixou na mão deles? Levei uma outra câmera, de Super-8, e deixei nas mãos deles. Só instruía a enquadrar e trocar o cartucho. Depois desse trabalho, montei um projeto chamado Visão dos Vencidos. Consegui uma bolsa americana, que me deu credibilidade diante das universidades e instituições. Eu era alguém, muito jovem, mas com boa bolsa. E vi muitas coisas dos índios americanos, ou seja, os índios manuseiam a câmera há muito tempo. A diferença é que os índios, hoje, fazem filmes como a gente. Conversas no Maranhão era para nós, brancos, mas teve importância para os índios, porque quando a geração seguinte viu o filme aconteceu algo importante. Os jovens não conheciam como os velhos narradores contavam as histórias, apenas conheciam as versões de seus pais, e quando viram que essas versões eram diferentes começaram a entrar em atrito com os pais. Eles estavam diante de uma prova incontestável. Minha idéia é sempre provocar algo e interferir na realidade. Como era a relação com eles na filmagem? Eu perguntava para eles o que eles queriam que outros vissem, e eles selecionaram o que era importante. Então me levaram para alguns lugares que eles queriam mostrar. Não me lembro de terem proibido de filmar nada. Aí, com a bolsa americana, eu viajei e conheci reservas americanas, índios na América Central e na América do Sul, inclusive no Brasil, onde entra guarani e tupiniquim. Tudo isso foi feito em vídeo e a idéia era interativa, uma comunidade vendo o vídeo da outra. Isso em 1978 e 1979. No Espírito Santo, gravei um velho guarani e depois mostrei esse material para os guaranis do litoral de Cananéia. O velho de lá fez um ritual, cantando uma música por meia hora, mas, quando os índios de Cananéia viram, ficaram putos, não comigo, mas com o velho do Espírito Santo, porque ele não poderia ter feito aquele ritual para mim, um branco, jamais poderia ter participado daquele recado particular entre eles, uma coisa privada. Eu não entendia o que ele dizia e cantava. Mas ficaram temerosos de que eu podia revelar algum segredos deles... Bem, aí foi isso. Gravei nos EUA, mostrei material deles aqui no Brasil, levei fitas dos brasileiros para os índios americanos e fiz um percurso que vai da aldeia à escala da representação oficial. Tem, por exemplo, depoimentos de índios americanos que já... não são brancos, porque o cara é índio, não tem jeito, mas o cara tinha ONG, com escritório perto da ONU. Eram políticos ativistas mesmo, tanto que era na cidade de Minneapolis, no meio da cidade... Imagina uma reserva indígena no centro da cidade. Eles tomaram um quarteirão, invadiram e tomaram um quarteirão... Eram prédios assim, tomados. Depois isso resultou na fuga daquele sujeito, Letellier, ele foi lá para o Canadá, e os americanos seqüestraram o cara lá. Esses índios me levaram para gravar o recado de um fulano, mas o fulano é clandestino, procurado pelo FBI, então, eu tive de ficar rodando com eles por três dias. Eles me botaram em situações delicadas, do tipo entrar em um bar de brancos com eles, e eles todos armados, porque eles se defendem. Mas como eu reajo? Como me comporto diante dos brancos? Acabei indo, gravei o depoimento. O cara estava escondido em um prédio todo detonado, num refúgio mesmo, como é na Palestina hoje. E esse material rodou, foi visto em comunidades diferentes. Fui também ao México, naqueles grupos meio revolucionários, com caras falando contigo com espingarda na mão. Aí eu fiquei conhecendo o caminho do dinheiro das ONGs. E vi a grande traição feita a esses povos indígenas. Para te dar uma idéia, existe uma fundação chamada InterAmerica Foundation, ligada ao governo americano. Como fui atrás dessa história? Eu estava no Peru e descobri um projeto ligado a Unesco. Tinham colocado 10 Toyotas com equipamentos de vídeo para que as comunidades indígenas fizessem os seus programas, com essa idéia de intercâmbio e comunicação, de entregar nossas armas ao outro, mas isso é cascata, porque o vídeo é mais um instrumento de dominação. É igual o computador. Ele te dá uma estrutura mental para você trabalhar, ele te impõe uma estrutura, não é a sua. Você não diz para o computador fazer o que você quer. Você faz o que computador te permite fazer na forma em que ele faz. Mas onde eu estava? Você falava de quando conheceu a InterAmerica Foundation... Ah, então fui atrás dessa história, querendo saber que projeto aquele, ainda muito ingênuo em relação a tudo aquilo. A finalidade desses vídeos que eram distribuídos para os índios era começar a mostrar como uma comunidade plantava, era uma comunicação para se formar uma unidade, uma coesão daquelas comunidades, uma ideologia de formação de um povo, de auxílio. Uma série de vídeos era sobre a produção da fibra do algodão, plantio de fibras para tecidos. A Levi’s estava por trás da Interamerica Foundation. E a Levi’s era importadora do Peru, de fibras para suas fábricas. As fibras vinham com qualidade diferentes, então tinham de gastar uma grana alta para dar uniformidade à qualidade do produto. Eles precisavam que o Peru vendesse um produto mais uniforme. Então eles faziam esses vídeos "culturais" como uma forma de se comunicarem, e aí passaram a interferir na produção, e todos os índios passaram a fazer da mesma maneira. Havia interesse financeiro em uniformizar tudo, e isso quebrou as diferenças e especificidades de cada cultura e juntou todos no sistema comercial. Meu relatório da bolsa foi sobre isso. Esse material só foi visto por índios. Depois disso, fui me dedicar a grupos não-contactados. Fui conhecer os Arara. E fez vídeos com eles... É, mas pra isso tive três anos de vivência no Pará. Uma vez fiquei oito meses seguidos na floresta. Aí a gente muda. Você muda metabolicamente e muda as ordens dos seus sentidos. Aqui, agora, a vista está em primeiro lugar. Mas se você está em uma mata fechada o ouvido passa a substituir a vista. É ele que te dá a sensação de profundidade, que te diz o que tem atrás dessa folhagem que está a poucos metros de você. Você deixa de ter linha reta, formas lisas, não tem mais, a superfície é multifacetada. Você não vê o horizonte. E isso provoca coisas, viu? Isso altera de fato sua percepção. A acuidade auditiva que se desenvolve... O homem é uma coisa maluca. A gente na verdade poderia desenvolver tanto, de fato, o ser humano. A gente acha que desenvolvimento de ser humano é implantar um chip qualquer em uma pessoa, para que seja homem biônico, mas o desenvolvimento dos seus sentidos... Eu aprendi e te digo: se você se condiciona diferentemente, você vai perceber mais coisas. Por exemplo, eu voltei depois desses oito meses na mata... Eu tive um acidente, cortei minha mão... E quando cheguei em São Paulo uma das coisas que me surpreendeu foi que tudo o que eu olhava tinha tantos detalhes... O som... Eu tenho um Fusca e, quando eu voltei pela primeira vez para meu Fusca, e olha que eu estudei mecânica, fiz engenharia, mas os ruídos que eu escutava... Eu ouvia um monte de coisas que nunca tinha ouvido. Depois você perde. Quinze dias depois você não ouve mais nada. Perde totalmente. Onde foi parar tudo aquilo? Foi o que eu percebi. A gente é o que a gente resolver ser. Mas foi um aprendizado. Agora, essa fantasia que eu tinha do olhar do outro, como se o olhar do outro pudesse me revelar alguma coisa... Negativo, não é através de tecnologia. Através de tecnologia, o cara só vai macaquear o que a gente faz. Não são culturas que criaram tecnologia, nem de reprodução de imagem, nem de memória. As civilizações que cultivam a morte, digamos, você tem memórias delas porque elas constroem em pedra. Eles constroem em folhas. Seis meses mais tarde não tem mais nada. O passado é o recontar do presente, sempre a mesma coisa. Você fez uma série de documentários com músicos. Gravei coisas com músicos. Mas só um foi finalizado. Confesso para vocês: sou uma pessoa frustrada em relação à quantidade de material. Eu gravava muito, filmava muito, mas terminar é complicado. Falta dinheiro, as coisas vão sendo guardadas. A quantidade de material que eu perdi nessas viagens que fiz, olha... Eu tenho as fitas, mas as máquinas não existem mais, não tem como assistir, e o suporte está grudento, quer dizer, acabou... Com toda nossa fantasia de memória, de criar sistemas, hoje nós estamos anulando a memória. O sistema digital são apenas números, não tem nem mais como ver o que é. E basta uma panezinha qualquer que está perdido. O que me adianta ter um banco de dados digitais se eu não sei o que é aquilo? A história do homem é ainda essa aqui, a da conversa. A tradição oral ainda é a grande força da identidade do homem. Cultura é isso, essa coisa viva, não um passado registrado, que você nem sabe o que é. Você fez ainda um filme sobre a Biblioteca Municipal de São Paulo e outro sobre o Teatro Municipal. O do teatro é lindo, eu adoro, é um musical. Tem duas versões. Uma de meia hora que fui obrigado a fazer, por conta de uma exigência do Minc, e outra de uma hora. Mostrei essa para o Minc, eles ficaram putos, mas o Weffort gostou da versão de uma hora. As cinco mil cópias que foram feitas foram todas usadas para o Ministério das Relações Exteriores. Nenhuma foi distribuída na finalidade que tinha, que era para as Bibliotecas do Professor, no país inteiro. Me contaram, não posso afirmar, mas é o que soube. Você já trabalha há bastante tempo no projeto de Serras da Desordem, não? Dez anos. É uma ficção baseada na realidade. Essa busca de tentar extrair a ficção da realidade é algo que sempre tentei dentro do documentário – tudo depende de como você olha. Então tentei narrar a história de um índio com os próprios índios, onde em certas situações eu filmo o cotidiano deles e em outras eu represento com eles situações que já aconteceram. Viajei mesmo. Fui ao Maranhão, Bahia, Brasília. Fui encontrar as pessoas que esse índio encontrou durante os dez anos de peregrinação. E todos toparam, então refiz com o índio a viagem que ele fez nos anos 70, quando a família foi toda massacrada, ele escapou e, durante dez anos, ele veio descendo para o Planalto Central, mas é apanhado na Bahia, em 1988, e ninguém sabia quem era, ninguém entendia a língua dele. Chamaram intérpretes de línguas próximas, e o acaso faz o seguinte: o índio que chamam como intérprete está de porre e não pode vir. Aí o cara do posto manda outro, de 18 anos, que falava mais ou menos o português, mas dominava bem o tupi. Foi ele, no lugar do outro. Quando ele chegou em Brasília, ele ficou travado porque o índio perdido é o pai dele. Eles se reencontram. Os dois ficam sabendo que nenhum deles foi morto no massacre. O pai depois não quis ficar na aldeia do filho, porque muitos falam português, pela proximidade com os brancos, então ficou em uma aldeia de um grupo mais nômade. Essa é uma história que me tocou, me pegou por esse lado do reencontro, da perda e, diante do não saber, o reencontro – é uma família despedaçada que se reencontra. Achei isso positivo como elemento narrativo. Foi uma época difícil, porque eu tinha me separado, estava vivendo longe de um filho pequeno, então era um sentimento que eu estava sentindo e essa história é muito reveladora de nossas esperanças. No meio da filmagem, o índio foi atropelado e quase morreu! Cara, eu fiquei péssimo. O cara sobreviveu a tudo e eu, com minha intenção branquinha, ao refazer o trajeto dele, ele quase morre... Fiquei mal com essa atitude de interferência. Porque pode ter conseqüências que você não espera, né?... Filmou muito? Filmei 140 horas de material. Oito horas em 35mm e o restante em Mini-dv. É passado e presente, preto e branco e a cores, mas não é exatamente isso. O preto e branco expressa a interioridade do índio. Nunca pensei em interferir na imagem, mexer nela, mas vou fazer algumas alterações com a tecnologia digital. Novos projetos? Projetos eu tenho sim, mas estou tão envolvido com esse e está tão arrastado para conseguir sair dele, estou com todos os contratos vencidos, com dívidas. Ainda não me cobraram porque sabem que é complicado... Mas eu tive que justificar os atrasos. Por exemplo, o contrato do Ministério vale por um ano, só que o dinheiro chegou sete meses depois, então é um contrato que não tenho como cumprir. Mas eles sabem disso e estão sendo corretos. Não sei agora para onde vai agora, mas estou vendo ai um cinema meio franchising. Não sei se vale a pena entrar nessas leis. Prefiro produzir de uma maneira mais simples e pessoal, com amigos. Eu sou autônomo – não tenho laboratório, mas faço o resto em casa, do roteiro à mixagem. Olha, o contrato com a Petrobrás não é patrocínio, mas de publicidade. Eles me dão um tanto de dinheiro para aparecer o nome deles por tantos segundos em tal lugar no filme. E é a primeira coisa a aparecer nos filmes... Como se eles fossem produtores. E como se dinheiro fosse deles e não de isenção de impostos. É como a televisão, que é concessão pública. Governo é isso, de esquerda ou direita, ele é mantenedor. Espero que a garotada nova tenha raiva do que esteja acontecendo no mundo, porque essa raiva é que vai gerar a possibilidade de um pessoal independente, marginalizado, que gere um cinema que questione tudo o que está acontecendo, para exigir uma reflexão, e não essa pasmaceira mercadológica. Tem gente dizendo aí que filmes de periferia não são vistos, que o que dá público agora é comédia... Ah, as fórmulas, as estratégias, pelo amor de Deus, cara, tira isso da frente... O franchise é a solução do esperto. Não tenho interesse nesse cinema feito no Brasil. Só tenho ido ver filmes de amigos. E quando estou para filmar, aí é que eu não vejo filmes mesmo. As imagens interferem demais em nossa cabeça. Prefiro buscar minhas próprias imagens, preciso de um esvaziamento desse consumismo cultural.. Entrevista realizada em 2005 por Daniel Caetano, Francis Vogner, Francisco Guarnieri e Guilherme Martins. Transcrição de Bianca Novaes e Cléber Eduardo. |